Reformas liberais no Brasil às portas da quarta revolução industrial
Lindolpho Cademartori
Trajetória da decadência econômica nacional
Em maio de 2018, o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (ENCE/IBGE), publicou artigo no qual previa que o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil naquele ano corresponderia a 2,5% do PIB global¹. A previsão de Diniz Alves foi confirmada, no início do ano seguinte, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), cujo relatório anual correspondente a 2018 assinalou que aquele fora o sétimo ano consecutivo em que o Brasil havia reduzido sua participação percentual na produção mundial de bens e serviços².
Tanto o texto do demógrafo brasileiro quanto o relatório da organização internacional indicam que, de 4,4% em 1980, o PIB nacional passou a corresponder a 3,1% da produção global em 2011, resultando nos 2,5% de 2018.
O ano de 1980 é relevante por duas razões convergentes: ele marca o fim simbólico do mais longo ciclo de crescimento econômico da história do Brasil, deflagrado com a Proclamação da República em 1889 e concluído em 1979-80, e o início de um de estagnação que já dura 40 anos. O escopo deste artigo não permite uma avaliação pormenorizada do desenvolvimento econômico do Brasil desde o fim do Império aos dias atuais³. Bastará aqui destacar que um conjunto de medidas estruturalmente simples, compreendendo essencialmente reformas legais, permitiu, no intervalo de uma década (a de 1890)4, que a economia brasileira transitasse da estagnação, que caracterizara a vida econômica nacional nos primeiros 67 anos posteriores à Independência, à de detentora de um dos maiores índices de crescimento em todo o mundo — título que ostentaria até o início da década de 1980.
O ciclo de crescimento heterogêneo (1890-1980)
As reformas empreendidas pelos primeiros governos republicanos diziam respeito sobretudo à criação de uma legislação comercial e econômica sintonizada com o desenvolvimento do capitalismo industrial então vivido pelos países ocidentais e pelo Japão5 . Elas foram suficientes para dar início, com recursos financeiros majoritariamente nacionais, a um ciclo (que naturalmente não foi ininterrupto nem ideal, mas que acarretou avanços revolucionários em relação ao padrão de atividade econômica do Brasil entre 1820 e 1890) de crescimento centrado no mercado interno6 que só chegaria ao fim em 1980, com o esgotamento das possibilidades de expansão econômica por meio da incorporação de mão-de-obra com níveis de produtividade relativamente baixos.
Esse ciclo de crescimento não foi, contudo, homogêneo. Tendo se estendido por cerca de 90 anos (1889-1979), ele pode ser dividido em dois períodos: o liberal (1889-1930) e o desenvolvimentista (1930-1979). Há, naturalmente, alguma arbitrariedade nessas classificações: nem o primeiro período foi caracterizado por um crescimento econômico no qual a agência estatal esteve inteiramente ausente, nem o segundo compreendeu uma economia planificada de cariz soviético. São generalizações que, conquanto imperfeitas, permitem a identificação de uma tendência prevalente em cada um dos períodos, assim definindo-o.
O esgotamento do modelo liberal das primeiras quatro décadas da República, em 1930, foi o primeiro momento da história do Brasil em que os desdobramentos domésticos em grande medida acompanharam os acontecimentos globais: a ordem liberal, que ganhara uma sobrevida algo artificial, particularmente na Europa, após a Primeira Guerra Mundial, sucumbira à crise econômico-financeira deflagrada com o crash da Bolsa de Nova York em outubro de 1929 e à ascensão do fascismo italiano na década de 1920 e do nacional-socialismo alemão no início da década de 1930. Nesse contexto, surgiram ou foram intensificadas múltiplas variações nacionais de modelos de desenvolvimento com maior presença do Estado na atividade econômica, do New Deal de Roosevelt nos EUA ao nacional-desenvolvimentismo de Vargas no Brasil, passando pelo corporativismo de Mussolini na Itália (copiado, com tons variados, em praticamente toda a Europa, da Hungria do Almirante Horthy ao Portugal de Salazar).
No Brasil como no resto do mundo, esses construtos intervencionistas inspirados, entre outros, nas ideias de concorrência perfeita de John Kenneth Galbraith7 e do papel do Estado como ente gerador de demanda de John Maynard Keynes8 , se expandiram com o início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e sobreviveram a ela, com a manutenção da função do Estado como otimizador da alocação de recursos econômicos e moderador das condições de concorrência. Esse entendimento do funcionamento da economia pode ser observado na organização (ou, no caso da Europa Ocidental, reorganização) das indústrias automobilística, de aviação civil, hidrocarbonífera, petroquímica e siderúrgica, entre outras, dos EUA, da Europa Ocidental e do Brasil após a Segunda Guerra Mundial.
A estagnação (1980- )
Para entendermos as principais razões da estagnação econômica do Brasil a partir de 1980 é necessário que compreendamos as transformações atravessadas pelas principais economias industriais nos últimos 40 anos. Um recorte instrutivo e preliminar dessas mudanças pode ser observado a partir do cotejo do índice S&P 500, composto pelas 500 empresas com maiores valores de mercado cotadas nas bolsas norte-americanas Nyse e Nasdaq, nos anos de 1980 e 2020. Naquele ano, o S&P 500, apesar de ter uma empresa de tecnologia e outra de telecomunicações nas duas primeiras posições da lista (IBM e AT&T, respectivamente), era majoritariamente integrado por companhias de petróleo e gás, que respondiam por mais de 50% do valor total de mercado das empresas do índice. Atualmente, o S&P 500 tem suas cinco primeiras posições ocupadas por companhias de tecnologia (Microsoft, Apple, Amazon, Alphabet/Google e Facebook), seguidas de conglomerados financeiros e empresas dos setores de saúde e biotecnologia. A empresa de energia com maior valor de mercado do índice, a Exxon Mobil, ocupa a 22ª posição na lista, logo abaixo da Adobe e acima da Netflix. Seu valor de mercado de USD 200 bilhões corresponde a cerca 13% daquele da Microsoft, companhia que encabeça o índice. Em 1980, as empresas que viriam a constituir a atual Exxon Mobil, Exxon e Mobil (fundidas em 1999), ocupavam respectivamente a segunda e sétima posições do S&P 500.
As transformações havidas ao longo de 40 anos tiveram como resultado, nos EUA, não somente a perda relativa de participação do setor de energia e de outros ramos industriais intensivos em capital, como siderurgia, mineração e automóveis, entre outros. Também o macrossetor industrial como um todo perdeu participação para o de serviços (no qual estão imiscuídas diversas atividades relacionadas aos setores de tecnologia e comunicações), que de 66,2% do PIB daquele país em 1980 passou a corresponder a 77,4% em 2019. Essencialment transetoriais (presentes nos macrossetores primário, secundário e terciário da economia), as áreas de tecnologia e comunicações passaram, sobretudo a partir da segunda década do século XXI, a responder por geração de riqueza muito superior àquela proporcionada pelos setores hidrocarbonífero, petroquímico, de siderurgia e automobilístico – precisamente os domínios que haviam proporcionado parte significativa do crescimento econômico observado nos EUA, na Europa Ocidental, no Japão e no Brasil do fim da II Guerra Mundial ao final da década de 1970.
O Brasil não apenas não teve recursos, nomeadamente tecnológicos e financeiros, para adaptar seu ambiente econômico a um parque industrial pós-fordista a partir de 1980, como também não realizou reformas regulatórias abrangentes que poderiam ter mitigado a progressiva perda de competitividade dos já mencionados setores industriais nacionais (sem prejuízo de outros). Somente em meados da década de 1990 um modesto programa de privatizações que resultou na venda da Embraer, da Vale, da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e do sistema Telebras, e o novo marco legal de hidrocarbonetos no Brasil (Lei 9.478/1997, responsável pela quebra do monopólio da Petrobras na exploração e produção de petróleo e gás natural), permitiram ao Brasil reduzir parcialmente as distorções que afetavam a competividade de setores essenciais ao funcionamento da economia nacional e que responde diretamente por 13% do PIB.
Consequentemente, a economia brasileira pôde se beneficiar em alguma medida do boom de commodities energéticas e minerais registrado, grosso modo, entre 2004 e 2014. Esse ciclo de alta do petróleo e do minério de ferro, commodities não-agrícolas mais importantes para o desempenho da economia nacional (e, para fins de exportação, o minério de ferro tem peso consideravelmente superior ao do petróleo), mostrou-se útil à narrativa parcialmente nacional-desenvolvimentista dos governos petistas de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016). O lulopetismo se valeu do crescimento econômico medíocre e de baixa qualidade, observado sobretudo na segunda década da década de 2000, para tentar construir, no Brasil, um projeto de poder em grande medida inspirado pelo bolivarianismo venezuelano, mas sustentado por uma base econômica muito mais diversificada que a da Venezuela. Esse projeto, apesar de politicamente interrompido em 2016, deixou consequências econômicas maléficas (não apenas econômicas, é verdade…) que se fazem amplamente presentes ainda em 2020 na economia brasileira, e que afetam mais enfaticamente o macrossetor industrial.
Aproximadamente no meio do ciclo de alta de commodities, particularmente nos anos de 2007 e 2008, a descoberta da viabilidade econômica do óleo da camada pré-sal e as expectativas exageradas em relação ao papel dos biocombustíveis tanto na dinamização da economia nacional quanto como instrumento de política externa, contribuíram para entorpecer a formulação e a implementação de estratégias econômicas de longo prazo. Isso ocorreu porque, somadas ao já mencionado boom, a narrativa desenvolvimentista do pré-sal e dos biocombustíveis transmitiu a falsa noção de que os altos preços das commodities eram um fenômeno permanente e não cíclico. Esse equívoco não foi exclusivamente brasileiro: nos EUA e na Europa, o aumento continuado do consumo, sobretudo chinês, de petróleo levou a previsões catastróficas segundo as quais a atual década veria o ápice da produção global de petróleo a partir do qual ela só faria declinar. Em outras economias de grande porte, contudo, ele não obscureceu o julgamento das elites políticas tanto quanto no Brasil.
Esse entorpecimento impediu que os tomadores de decisão brasileiros percebessem o deslocamento relativo de geração de riqueza de setores que definiram o crescimento econômico no pós-II Guerra Mundial (hidrocarbonetos, petroquímica, siderurgia e mineração, entre outros) para áreas de tecnologia (microprocessadores, semicondutores, cloud storage, comércio eletrônico, inteligência artificial, computação quântica, componentes ópticos e outros), comunicações (realidade virtual, realidade aumentada, tecnologias satelitais, infraestrutura 5G, redes sociais, streaming, entretenimento e outros) e biotecnologia, sem prejuízo de outras áreas. Esse deslocamento relativo naturalmente não significa que matérias-primas perderão sua importância econômica (e estratégica) ou que haverá queda absoluta das demandas correspondentes, e sim que o valor relativo desses insumos na geração total de riquezas tende a diminuir. Chama a atenção, nesse contexto, que o desaparecimento da capacidade do Brasil de crescer até mesmo a taxas medíocres durante os governos petistas tenha coincidido com o fim do ciclo de alta global das commodities (2014).
O argumento das reformas liberais: cenários para o futuro
Não há nenhum indício de que esse deslocamento arrefecerá ou será revertido, o que não exclui a possibilidade de que tenhamos, no futuro, outro ciclo de alta de commodities em alguma medida similar ao de 2004-2014. A consolidação do padrão 5G, a expansão das aplicações de sistemas de realidade virtual e realidade aumentada, o advento da Internet das Coisas (IoT), a paulatina substituição do motor de combustão interna por motores elétricos e células combustíveis de hidrogênio e os avanços nas áreas de computação quântica e inteligência artificial deverão concorrer para aumentar a dependência funcional de sistemas inteiros de infraestrutura em relação a componentes eletrônicos, desde a conectividade individual ubíqua que deverá ser possibilitada pela difusão de sistemas de realidade aumentada à transformação de cidades pela expansão da IoT e da inteligência artificial, passando por avanços nas áreas de sequenciamento genômico, terapias de retardamento do processo de envelhecimento e novos regimes de administração de drogas possibilitados pela bionanotecnologia, entre outros. Essa dependência, por sua vez, deverá aumentar a geração de riqueza direta ou indiretamente associada aos setores de tecnologia, comunicações e biotecnologia.
A economia brasileira poderá se beneficiar do aprofundamento dessas transformações, tanto no que se refere ao desenvolvimento e emprego de processos industriais complexos no País (os quais incidem não só sobre o setor industrial, mas também sobre atividades primárias como agricultura, pecuária e mineração9 e o setor de serviços) quanto ao uso doméstico e exportação de matérias-primas, sobretudo insumos energéticos e minerais. No entanto, a melhoria das condições de competividade da economia brasileira é indissociável da realização de reformas liberais que equalizem condições concorrenciais e otimizem e restrinjam o papel do Estado como agente econômico. Em entrevista concedida em 2016, o historiador Jorge Caldeira afirma que “o Brasil perdeu o bonde da história ao apostar no capitalismo de Estado”, pois na esteira da crise do petróleo e do sepultamento do padrão-ouro, houve “ponto de inflexão (…) em 1973 (…) faz com que a acumulação de capital deixe de ser comandada pelos Estados nacionais e passe para o comando das multinacionais. (…) O mundo enriquece aumentando a participação do setor privado na economia. Isso ocorreu em todos os países que deram certo de 1973 para cá” 10. Esse aumento da participação do setor privado na economia foi paulatinamente viabilizado pela reforma das legislações econômicas nacionais (e internacional e, em alguns casos, transnacionais e comunitárias) de teor liberal, fenômeno que no Brasil observou-se só muito pontualmente na segunda metade da década de 1990.
A equipe econômica do governo de Jair Bolsonaro apresentou uma série de macrorreformas necessárias a serem aprovadas durante o quadriênio 2019-2022: previdenciária, tributária, administrativa, privatização da Eletrobras, marcos legais do setor elétrico, do saneamento e da navegação de cabotagem, autonomia do Banco Central, projeto de lei que dispõe sobre o subsetor de gás natural e flexibilização do regime de partilha de produção de petróleo no pré-sal, entre outros. Apenas a reforma previdenciária foi aprovada no primeiro ano de governo, no contexto de uma disputa política renhida entre o Executivo e o Legislativo federais que muito concorreu para desidratar, principalmente em razão de pressões corporativistas sobre o Congresso Nacional e de interesses políticos no Parlamento que visavam (e visam) ao enfraquecimento do Presidente da República e de seu governo, a proposta originalmente concebida pela equipe econômica chefiada por Paulo Guedes. Havia a expectativa, no começo de 2020, de que o encaminhamento das demais reformas, com particular ênfase à privatização da Eletrobras, enfrentaria forte resistência de interesses corporativistas encastelados na Administração Pública Federal e de agendas políticas que têm como principal objetivo desgastar Jair Bolsonaro e seu governo.
No entanto, o desembarque, no Brasil, da pandemia de COVID-19, no fim de fevereiro/início de março deste ano, impactou de tal forma a recuperação econômica iniciada em 2017 que fez-se necessária uma reestruturação temporária de prioridades, acarretadas principalmente pelos efeitos das medidas de isolamento social sobre o emprego e a renda de dezenas de milhões de brasileiros. Conquanto não haja clareza em relação a quando a atividade econômica poderá retornar ao padrão que registrava, por exemplo, na primeira metade de fevereiro de 2020, os efeitos fiscais da pandemia deverão, segundo o ex-Secretário do Tesouro Nacional Mansueto Almeida, fazer com que a dívida pública brasileira oscile entre 85% e 90% do PIB em 2020. Esse índice, consoante dados da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, poderá superar 100% do PIB em 202611.
A projeção da IFI de déficit de R$ 700 bilhões nas contas públicas brasileiras para 2020, vale ressaltar, não leva em conta a prorrogação das necessárias medidas emergenciais implementadas pelo Governo Federal nem a adoção de medidas adicionais. Cumpre notar, no mesmo ensejo, que a expansão da dívida pública para níveis próximos a 90% do PIB provavelmente resultará no encurtamento dos prazos de rolagem ou pagamento dos títulos emitidos pelo governo federal. Estimativas do Banco Mundial indicam uma contração de 5,4% da economia brasileira em 2020. O restabelecimento das condições anteriores ou o advento de um novo padrão de relações interpessoais que permeia inclusive as interações e o exercício profissionais ocorrerá, espera-se, em algum momento de 2021.
O desarranjo da atividade econômica causado pela pandemia de Covid-19 certamente será utilizado como justificativa para o adiamento indefinido das macrorreformas econômicas por defensores da disfuncionalidade do papel do Estado brasileiro na economia: representantes de interesses corporativistas, indivíduos e entidades com compreensões pedestres de temas econômicos, liberticidas dos mais variados tons, lideranças de agremiações políticas socialistas que se locupletaram do híbrido de capitalismo de Estado e práticas mafiosas prevalente nos governos petistas e indivíduos e grupos ansiosos por devolver o Brasil ao padrão de gestão falido que vigorou entre 2003 e 2016. Tais indivíduos e grupos, todavia, não representam a maioria dos brasileiros, que não estão dispostos a endossar a continuidade a um modelo arcaico, ineficiente e perpetuador de privilégios injustificáveis.
A Proclamação da República, em 1889, permitiu ao Brasil dar início à superação de um padrão de organização econômica caracterizado pela aversão ao capitalismo de parte significativa da elite política do Império. O resultado da manutenção de um modelo arcaico foi a estagnação da economia brasileira ao longo de quase todo o século XIX: a renda per capita do Brasil, correspondente a USD 670 em 1820, foi de USD 704 em 1890, o que representa crescimento de 5% ao longo de 70 anos. Para fins de comparação, a renda per capita dos EUA em 1820 era de USD 1300 e de USD 4000 em 1900, o que corresponde a um crescimento de quase 208% em 80 anos12. Superada, já na última década do século XIX, grande parte dos anacronismos jurídicos em matéria econômica e financeira herdados do Império, a economia brasileira, cumpre reiterar, passou rapidamente à condição de uma das de maior crescimento em todo o planeta. O período compreendido entre 1930 e 1980, correspondente à etapa desenvolvimentista do ciclo iniciado em 1890, foi o único da história do Brasil, desde o início da colonização portuguesa, em que o desenvolvimento econômico foi em medida considerável viabilizado, e não obstaculizado, pelo Estado.
Esse ciclo se esgotou há 40 anos e uma análise do desempenho econômico do Brasil desde então permite observar padrões em alguma medida similares, resguardadas as devidas proporções, aos das sete décadas transcorridas entre 1820 e 1890: redução do peso do PIB nacional em relação ao global, crescimento econômico prolongado inferior à média mundial, aumento da renda per capita inferior ao registrado em economias desenvolvidas de grande porte, para não mencionarmos comparações sobre a evolução do PIB per capita do Brasil e seus contrapartes chinês, indiano e indonésio, entre outras economias em desenvolvimento, ao longo das últimas quatro décadas. Para ficarmos com um exemplo: o aumento da participação da iniciativa privada na economia fez com que a renda per capita da China passasse de USD 1040 (em valores atualizados) em 1980 para USD 19.504 em 2019, o que corresponde a um aumento de 1875%. No mesmo período, a renda per capita brasileira passou de USD 6532 (em valores atualizados) para USD 16462, o que representa crescimento de 152%. Na ponta do lápis, a renda per capita chinesa cresceu 12,3 vezes mais que a brasileira em um intervalo de 39 anos. Isso não equivale a sugerir que o Brasil deva emular o modelo chinês de crescimento econômico, tanto porque ele pressupõe decisões tomadas no contexto de um regime político absolutamente inviável e indesejável no Brasil quanto em razão do fato de a China ter partido de um patamar de desenvolvimento relativo muito inferior ao brasileiro em 1980, ademais de outras características que salientam as diferenças entre os dois países. Um fato, contudo, é indisputável: não apenas a China, mas todos os países que apresentaram índices de crescimento econômico iguais ou superiores à média global desde 1980 o fizeram por meio do aumento da participação do setor privado e redução da presença estatal na economia.
A presente década deverá representar para searas como inteligência artificial, IoT, realidade aumentada e realidade virtual, entre outras, o que o decênio compreendido entre 2005 e 2015 representou para a monetização de atividades econômicas antes majoritariamente presenciais, como comércio eletrônico e publicidade. Apesar de a maioria das tecnologias que deverão gerar enormes quantidades de riqueza a partir desta década ter uso dual civil e militar (e poder ser utilizada por agentes e entidades estatais também para fins civis, defensáveis ou não), elas não poderão ser eficientemente utilizada pelo Estado para fins de geração de riqueza, pois os valores a elas agregados, em termos de hardware mas sobretudo de software, resultam em produtos e serviços que nenhuma entidade estatal tem capacidade ou interesse em oferecer à população. Será intensificada, portanto, a tendência de aumento da participação do setor privado na economia.
O arcabouço jurídico brasileiro, inadequado como comprovou ser para permitir à economia nacional se beneficiar, nas últimas quatro décadas, dos ganhos de produtividade e de uma inserção eficiente nas cadeias globais de valor, poderá, caso não sejam realizadas, entre outras, as macrorreformas liberais às quais nos referimos, se mostrar ainda mais obsoleto no contexto das mencionadas transformações já em curso. A atual pandemia deverá acelerar muitas das transformações tecnológicas já em curso, e o Brasil, caso promova reformas que permitam a viabilização de mercados verdadeiramente concorrenciais em setores como o de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica e toda a cadeia de exploração, produção, refino, distribuição e comercialização de petróleo e derivados, sem prejuízo de outros, poderá auferir ganhos de produtividade e de eficiência em setores industriais tradicionais.
Tais avanços em domínios econômicos essenciais concorrerão para posicionar a economia nacional para beneficiar-se também da Quarta Revolução Industrial, sobretudo se as mudanças na legislação forem acompanhadas de políticas de viabilização de condições legais e infraestruturais necessárias para o desenvolvimento tecnológico local em setores de ponta (o que naturalmente tem horizontes de longo prazo e não equivale ao conceito nacional-desenvolvimentista de política industrial, expressão que o protecionismo histórico do Estado e de parte da iniciativa privada brasileiros transformou em oxímoro). Tendo presente que a emergência econômica deflagrada pela pandemia de COVID-19 é transitória, pode-se dizer que os problemas econômicos do Brasil contemporâneo são em grande medida equacionáveis por meio de soluções políticas e legislativas que resultem em redução dos obstáculos do Poder Público e do ordenamento jurídico à fruição da atividade econômica. Um problema em certa medida similar ao que enfrentávamos há 130 anos.
Lindolpho Cademartori é diplomata de carreira desde 2006. As opiniões expressas neste artigo são pessoais e não refletem necessariamente aquelas do Ministério das Relações Exteriores.
Notas bibliográficas
¹ ALVES, José Eustáquio Diniz. Brasil: quatro décadas de baixo crescimento econômico, sendo duas perdidas. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/579039-brasil-quatro-decadas-de-baixo-crescimento-economico-sendo-duas-decadas-perdidas . Acesso em 18/06/2020
² IMF Annual Report 2018. Disponível em https://www.imf.org/external/pubs/ft/ar/2018/eng/assets/pdf/imf-annual-report-2018.pdf . Acesso em 18/06/2020
³ Para uma análise abrangente e inovadora sobre a história econômica do Brasil do descobrimento à atualidade, cf. CALDEIRA, Jorge. História da riqueza no Brasil: Cinco séculos de pessoas, costumes e governos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017. 624 pp.
4 Cf. CALDEIRA, Jorge. Op. Cit. Capítulo 43.
5 Apesar da aprovação, pelo Parlamento Imperial, em 1850, da lei que instituía o Código Comercial (e de sua posterior sanção pelo Imperador), parte significativa do ordenamento jurídico comercial brasileiro ao longo do século XIX fora herdado das Ordenações do Reino (Ordenações Manuelinas), compêndio legal multidisciplinar que, em termos econômicos e comerciais, estava em sintonia com a realidade econômica portuguesa do fim do século XV e início do século XVI, e não com a brasileira do fim do século XIX.
6 Cf. CALDEIRA, Jorge. Op. Cit. Caps. 1-21.
7 GALBRAITH, John Kenneth. Modern competition and business policy. Electronic Edition. Whitefish (Montana): Literary Licensing, 2012.
8 KEYNES, John Maynard. The General Theory of Employment, Interest and Money. Buffalo: Prometheus, 1997.
9 A principal razão pela qual não abordamos o setor agropecuário é a de que ele é, sob a maior parte dos aspectos, um êxito econômico indisputável.
10 Jorge Caldeira: chegamos à rabeira do desenvolvimento. Disponível em https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2016/04/jorge-caldeira-chegamos-rabeira-do-desenvolvimento.html. Acesso em 05/06/2020
11 Agência Senado. Dívida Pública deve passar de 100% do PIB nos próximos anos, alerta IFI. Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/05/25/divida-publica-deve-passar-de-100-do-pib-nos-proximos-anos-alerta-ifi-1. Acesso em 21/06/2020
12 CALDEIRA, Jorge. Op. Cut. Cap. 36
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