“Les Inséparables”, o novo romance de Simone de Beauvoir
A obra “As Inseparáveis” foi escrita em 1954, mas só foi publicada em 2020. Trata-se de uma autobiografia-romanesca
Rodrigo Edvard Araújo Silva
Especial para o Jornal Opção, de Estrasburgo
“Les Inséparables” é o título do romance inédito (lançado na França em outubro de 2020) da filósofa, escritora e feminista Simone de Beauvoir (1908-1986). O livro foi escrito em 1954. Entretanto, por razões incertas, só foi publicado agora.
Nesta autobiografia-romanesca, Simone de Beauvoir retoma a história da sua relação com a sua melhor amiga de infância, Elisabeth Lacoin (1907-1929), mais conhecida por Zaza no livro “Les Mémoires d’une Jeune Fille Rangée”.
Autobiografia-romanesca é o termo comumente utilizado na França para descrever as memórias de Simone de Beauvoir. As razões são claras: mesmo que Simone de Beauvoir tenha contado sua história (autobiografia), alguns fatos foram mascarados, outros colocados em um espaço-tempo diferentes do qual eles realmente ocorreram. Para além, os nomes de vários personagens foram modificados. Logo, uma realidade com características ficcionais (autobiografia-romanesca). Assim, este novo romance não poderia fugir à regra: Pascal Blondel representa o filósofo Maurice Merleau-Ponty (Pradelle no livro “Les Mémoires d’une Jeune Fille Rangée”); Sylvie (Simone de Beauvoir) tem duas irmãs, quando na realidade Simone de Beauvoir teve somente uma; Andrée (Elisabeth Lacoin, conhecida por Zaza) tem no livro sete irmãos, mas na vida real tinha nove.
O livro tem início no primeiro dia de volta às aulas, quando as personagens têm 9 anos de idade e é ocasião na qual Sylvie (Simone) conhecerá Andrée (Zaza). Entre as duas nasce uma amizade infantil e viva e mesmo que de meios sociais diferentes, e que elas conversem sempre de maneira formal entre si, tratando-se sempre por “vous”, pronome da língua francesa que geralmente é utilizado com pessoas mais velhas ou desconhecidas, logo se tornam As Inseparáveis.
A amizade entre as duas é mantida ao longo da adolescência e da primeira juventude, embora Sylvie e Andrée sigam caminhos diferentes. A primeira conquista aos poucos sua liberdade, enquanto a segunda é cada vez mais engolida por uma realidade à qual já havia sido predestinada pelo seu sexo e sua família católica tradicional.
Para muitos leitores de Simone de Beauvoir, trata-se de uma amizade ambígua. De fato, Sylvie (Simone) quando criança se deixa encantar rapidamente pela inteligência e ousadia de Andrée (Zaza), a tal ponto que esta se torna mesmo a razão de viver de Sylvie Simone. Mais tarde Sylvie declara a Andrée a importância que esta ocupa na sua vida.
Segundo o filósofo Paul B. Precisado, essa declaração atesta o amor passional e lésbico que Sylvie sente por Andrée. Contudo, esta última, devota religião católica e à sua família, não leva adiante os avanços da sua melhor amiga e investe suas pulsões passionais em uma outra figura: Pascal Blondel (Merleau-Ponty), pois este corresponde mais ao destino previsto para ela por sua família.
Homem heterossexual, estudioso, devoto a Deus, respeitoso de sua família, Pascal parece ser um partido perfeito para o que é esperado de Andrée: que ela se case, tenha filhos, seja fiel ao marido e à família e se ocupe da casa e da educação dos filhos. Porém, ainda que o amor de Pacal (Merleau-Ponty) por Andrée pareça ser sincero, o jovem estudante se recusa se casar de imediato com ela. Fato este que será decisivo na vida de Andrée.
No que diz respeito a Sylvie (Simone), mesmo que não seja mencionado neste romance, os leitores da escritora e filósofa já sabem que ela investirá em uma relação livre, de amor e companheirismo com um jovem estudante de filosofia à época — Jean-Paul Sartre.
Tendo em conta que neste romance inédito a paixão que Sylvie (Simone) alimentava por sua eterna e inseparável amiga é mais palpável ainda que mascarada por meio de palavras ternas, o leitor não pode impedir de perguntar se esta não seria a razão pela qual Simone de Beauvoir não quis publicar o livro na época em que foi escrito. Talvez porque a história de “As Inseparáveis”, escrita apenas cinco anos depois de “O Segundo Sexo”, atiçaria ainda mais os ataques, insultos e epítetos degradantes que este ensaio provocou ao encontro de Beauvoir?
Neste romance o foco é colocado na vida de Andrée. Desde o início o leitor compreende que a transgressão desta será de querer ser ela mesma, e, mais grave ainda, de almejar se tornar quem ela quer ser. Deste modo, vítima da sociedade e de uma mãe manipuladora, ela será dilacerada entre suas ambições pessoais de um lado, e as regras da religião, as exigências familiares, sua devoção à sua mãe, e as pressões sociais impostas à mulher da época, do outro.
Procedendo desta forma, se no primeiro livro da sua autobiografia, Les mémoires d’une jeune fille rangée (“Memórias de uma Moça Bem Comportada”), Beauvoir, ao contar sua história, dá acesso às suas leitoras a um percurso possível para escapar das imposições sociais feitas às mulheres na época e se emancipar, no livro Les Inséparables, através a vida de Andrée, as leitoras têm um exemplo claro da fatalidade da vida de jovens mulheres que foram esmagadas devido às injunções que lhes eram feitas.
Enfim, mais uma vez a escritora do famoso “Le Deuxième Sexe” (“O Segundo Sexo”) marca a vida de seus leitores. Sobretudo de suas leitoras, dentre as quais muitas se reconhecerão seja na história de Sylvie, seja na história de Andrée.
Rodrigo Edvard Araújo Silva é graduado em Letras Francês pela Universidade Federal de Goiás. Mora em Estrasburgo, França, onde cursa mestrado em Literaturas Francesa, Geral e Comparada pela Université de Strasbourg. É colaborador do Jornal Opção.
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