DICOTOMIA
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Ideologia, quero uma pra viver
Cazuza
“Nos indivíduos, a insanidade é rara; mas em grupos, partidos, nações e épocas, é a regra.” — Friedrich Nietzsche
A dicotomia é uma arritmia dos corações. Mas a dicotomia só é possível porque a filosofia (todos aqueles seres tão cheios de soberba que amam o conhecimento acima de tudo) profere um estatuto de verdades. E verdades é o sonho que o homem moderno alimenta e imagina possuir dentro de suas convicções.
A dicotomia é um buraco sem fundo em que todos que ali entram perdem sua humanidade e se transformam em objetos de briga. É uma rinha preparada para o conflito. Tudo ali está enovelado de ideologia.
Se o mecanismo dicotômico for acionado, não há mais espaço para a compreensão e o respeito, pois tudo se liquefaz e se transforma em ódio, um ódio líquido e azedo, intragável. Vai produzindo uma náusea a se espalhar pelos corpos como uma febre, um contágio.
Qualquer discussão pode nos levar para o buraco da dicotomia e aí nos armamos não para destruir os argumentos do outro, mas para destuir o outro. Nesse caso, o outro realmente é o inferno.
E quanto mais próximos os contendores, maiores serão as agressões, pois a dicotomia é uma disputa rasa de poder pessoal e intelectual.
Na rinha, os argumentos serão como lâminas irresponsáveis, pois é a agressão que importa ali.
Como é acionada a dicotomia?
Com um convite. A solicitação para uma conversa e a conversa é uma armadilha, pois contém em si uma provocação, uma afronta às convicções do outro. E a afronta, como um mecanismo de atração, requer armamentos afiados em ambas as mãos. Sem espaço para cumprimentos.
A dicotomia é o reino da retórica, do já sabido e resgatado. É um recurso de slogans de pura sobrevivência e que uma vez acionado não pode mais ser recolhido.
O domínio se apodera do corpo todo, indissociável, unindo a mente, a voz, as garras e as verdades universais.
No outro se instala o mesmo ferramental, brilhante, afiado, pontiagudo. E pronto a desferir o golpe ocasional a depender da palavra, da voz, da injúria.
Na dicotomia é injurioso defender um lado em detrimento do outro lado se esse lado não for do bem. Pois a dicotomia sempre se instala entre dois lados de uma questão. Lados antagônicos, opostos e irreconciliáveis. E ego, muito ego indispensável.
É o momento da glorificação do ego, e sabemos que o ego é o bem, como forma social íntima.
O duelo de egos é infrutífero como uma pá de cal sobre a vida. Tudo seca, tudo corroi, tudo desaparece e fica apenas o brilho pálido do próprio ego. Mas cada um sai como se tivesse ganho algo novo, uma batalha, um pequeno prêmio colorido. O bem sempre vence afinal.
A cada contenda dicotômica as relações se enfraquecem e não existe mais conexão alguma, o vizma se dissolve com líquidos pútridos e boia no vazio da pequena alma.
Qualquer um pode impedir a dicotomia e nenhum quer. Mas o ego é o senhor da heteronomia e quer o poder de reduzir à força a humanidade do outro. No centro da voragem dicotômica não há vestígios de amor algum. Todo ele sugado para a escuridão do apocalipse, essa revelação que não pode se ocultar no centro de tudo.
Na escuridão da dicotomia não existe nada além de dor, raiva, ódio, desavença sem fim. Por isso é preciso recusar entrar ali. Qualquer um pode puxar o outro para dentro, como se fosse um caminho natural da inteligência, mas é apenas um resguardo da infinita comiseração para a morte em vida.
A dicotomia é um evento singular (pois está vívida na mente que se julga do bem), dual (preparada para destruir o mal), mas que pode ser replicado indefinidamente até ocorrer com um país inteiro, com o próprio e conhecido mundo. É nisso que a dicotomia é familiar, pois ocorre no pequeno círculo e se expande até o infinito de pessoas em que entra em contato. É um contágio em leucemização. Tudo que toca morre. E quem entra no buraco da dicotomia quando sai não se lembra das ofensas, das lâminas afiadas em que se transformara a língua. Tudo parece perfeitamente justificado.
E isso é o pior de tudo, pois a qualquer momento entramos no mesmo buraco, como se nunca o tivéssemos provado.
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A dicotomia existe a partir de um momento histórico muito preciso em que há uma ruptura aparente no tecido social entre o bem e o mal e o bem se instaura por valores de superioridade, como a preocupação com o planeta e o desejo discursivo do fim da desigualdade social e esse lugar moral assume estatuto de verdade e de opção pela vida. E qualquer um que discorde desse lugar superior será tragado pela indignidade do mal, impedindo qualquer hipótese de operar com ideias divergentes, pois a divergência, na dicotomia, é o mal.
Dessa forma podemos afirmar que não existe de fato uma dicotomia entre esquerda a direita. Existe uma percepção de se estar num lugar superior diante de inferiores que por pensarem diferente merecem a extinção.
Esse lugar supostamente superior resguarda uma narrativa completa e coerente e qualquer um que pense divergente será imediatamente arremessado ao lugar oposto, de modo imediato.
Segundo Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), a estupidez é um inimigo mais perigoso para o bem do que o mal.
Em sua obra Teoria sobre a estupidez, ele afirma:
“Contra a estupidez não temos defesa. Nem protestos nem força podem alcançá-la. O raciocínio é inútil. Os fatos que contradizem os preconceitos pessoais podem simplesmente ser desacreditados — na verdade, o estúpido pode contrariá-los criticando-os e, se forem inegáveis, podem apenas ser postos de lado como exceções triviais. Assim, o estúpido, diferente do canalha, fica completamente satisfeito consigo mesmo. Aliás, ele pode facilmente tornar-se perigoso, uma vez que não é preciso muito para transformá-lo em agressor. Por essa razão, é necessário ter mais cuidado com ele do que com um mal-intencionado. Nunca mais vamos tentar persuadir a pessoa estúpida com razão, pois isso é insensato e perigoso.”
A dicotomia como estado atual de discurso pronto replica essa teoria com estanha coincidência. Não adiante discutir com os estúpidos, pois ela te levará para o buraco da dicotomia sem refletir um só instante e vai se chamar de burro.
“Notamos ainda que as pessoas que se isolaram dos outros ou que vivem em solidão manifestam este defeito com menos frequência do que os indivíduos ou grupos de pessoas inclinadas ou condenadas à sociabilidade. E assim parece que a estupidez é talvez menos um problema psicológico e mais um problema sociológico.”
A narrativa é a certeza do estúpido:
“Na conversa com ele [o estúpido], sente-se praticamente que não se trata de uma pessoa, mas dos slogans, palavras de ordem e coisas do gênero que se apoderaram dele. Ele está sob um feitiço, cego, usado e abusado em seu próprio ser. Assim, depois de se tornar um instrumento insensível, a pessoa estúpida também será capaz de qualquer mal e, ao mesmo tempo, incapaz de ver o que é o mal.”
Com as redes e as necessidades de likes, os estúpidos proliferaram virtualmente. Da mesma forma, o empoderamento constitui elemento fundamental para a proliferação da estupidez.
“O poder de um precisa da estupidez do outro. O processo em ação aqui não é que as capacidades humanas particulares, como o intelecto, por exemplo, atrofiam ou falham de repente. Em vez disso, parece que, sob o peso esmagador do aumento do poder, os seres humanos são privados de sua independência interior e, de maneira mais ou menos consciente, desistem de estabelecer uma posição autônoma em relação às circunstâncias emergentes. O fato de a pessoa estúpida ser muitas vezes teimosa não deve cegar-nos para o fato de ela não ser independente.”
Dicotomia, dualidade, dialética carregam diferenças importantes que precisamos entender.
Dualidade são as zonas de luz e sombra que carregamos em nós. Definem nossa imperfeição por ações que são boas e más, sem prevalência de um sobre o outro. Qualidades e defeitos definem o humano.
Já o pensamento dialético nos convida ao consenso, em que pensamentos que se opõem podem gerar uma terceira forma derivada das formas opostas anteriores e em conflito sadio.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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