O brilho perdido das coroas e o direito de quem sonha diante do Louvre, o museu roubado
Renata Abalém
Especial para o Jornal Opção
Poucas famílias europeias viram tão de perto o esplendor e a ruína quanto a Casa de Orléans. Ramo cadete dos Bourbons (aquele dos filhos mais novos que não herdam o trono), foi por séculos a sombra dourada da realeza francesa: sempre próxima ao trono, raramente sobre ele. Mas o acaso tem seu senso de humor: o cadet Luís Filipe I tornou-se o “rei cidadão” em 1830, reinando sem cetro divino, sustentado apenas pela vontade do povo. Luís Filipe I casou-se com Marie-Amélie de Bourbon-Siciles e foi pai de uma linhagem que, atravessando o Atlântico, uniu-se ao Brasil pelo casamento da Princesa Isabel (a da Lei Áurea) com o Conde d’Eu.
Atente, leitor: Gaston d’Orléans, o Conde d’Eu, era neto de Luís Filipe e de Marie-Amélie. Está acompanhando o desenrolar da história?
Essa avó, Marie-Amélie, deixou um legado que não se mede em sangue, mas em luz. E que “luz”: as safiras do Ceilão, hoje Sri Lanka. Lapidadas no século XIX, essas gemas tornaram-se a célebre Parure de Safiras de Orléans, conjunto de tiara, colar e brincos expostos no Museu do Louvre, roubadas nesse outubro. Em 1985, os herdeiros da Casa de Orléans doaram o conjunto ao museu; antes disso, porém, eram joias livres, e podiam dispor delas como quem dispõe da própria história.
As lendas dessas gemas são belíssimas, quase que uma beleza religiosa. Uma delas conta que Buda, em uma de suas encarnações, tocou no solo do Ceilão e abençoou o lugar para que até as pedras refletissem a sua mente. Por isso, nas tradições locais, as safiras são chamadas de “pedras do céu”, capazes de acalmar paixões e afastar ilusões.
Essas mesmas safiras, ao lado das esmeraldas colombianas do colar da imperatriz Marie-Louise da Áustria e da coroa de esmeraldas e diamantes de Eugénie de Montijo, como quase todo o planeta sabe, ainda estão desaparecidas.
Direitos dos consumidores
O roubo, cinematográfico, fechou, por algum tempo, o maior museu do mundo. Um crime histórico, mas também um drama moderno: milhares de turistas, inclusive brasileiros, viram-se diante de portas lacradas, tendo em mãos apenas seus bilhetes e um vazio de expectativa, depois de uma longa viagem para Paris.
E se você não sabe, vou te contar: tem sempre um consumidor no meio do caminho e no meio do caminho tem sempre um consumidor.
O visitante que comprou o ingresso no Brasil, por meio de agência de viagens ou plataforma nacional, está amparado pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). Ainda que o fechamento decorra de um fato imprevisível como o roubo, que é típico caso fortuito, o fornecedor responde objetivamente pelo serviço não prestado. (Frise-se: o museu já foi reaberto.)
Daí é que o consumidor tem direito ao reembolso integral e, em certas situações, arrisco a dizer até à indenização por despesas diretamente ligadas à visita frustrada, como deslocamento e hospedagem.
A responsabilidade é solidária: cabe à agência restituir o valor e buscar depois o ressarcimento junto ao Louvre.
Para aqueles que compraram o ingresso diretamente na França, as regras são as do Direito europeu, que, pelas normas do Code de la Consommation e pela Diretiva 2011/83/EU, ditam que o museu deve oferecer reembolso total, mas não está obrigado a compensar perdas adicionais.
O sistema francês protege o contrato; o brasileiro, a confiança.
Entre joias roubadas e ingressos devolvidos, vamos costurar essa conversa com veios na brasilidade: embora neto legítimo, Gaston, o Conde d’Eu não era o herdeiro dinástico direto das joias, porque essa função cabia ao tio dele, Louis, duque de Nemours, que virou chefe da Casa após a morte de Luís Filipe I. A tradição dos Orléans obedece ao direito de primogenitura, segundo o qual apenas o chefe da Casa herda o direito sobre as insígnias e joias de representação. Noutro lado, Gaston se naturalizou brasileiro ao casar-se com Isabel e, pelos padrões das casas europeias do século XIX, isso equivalia, na prática, a perder direitos patrimoniais sobre bens da linha principal francesa, salvo disposição expressa em testamento (que não houve).
Mas talvez haja nisso uma beleza discreta: a de um mundo que, mesmo diante da perda, ainda procura equilíbrio.
Se as safiras do Ceilão lembram que toda luz é passageira, o direito hereditário de Gaston — havido e não tido — recorda que há quem nasça para perder coroas enquanto outros perdem apenas o ingresso.
E assim, entre reis que perdem joias e turistas que perdem visitas, resta o consolo jurídico: o direito do consumidor, essa curiosa invenção humana que tenta com recibo e tudo, reembolsar o impossível.
Renata Abalém é advogada.
O post O brilho perdido das coroas e o direito de quem sonha diante do Louvre, o museu roubado apareceu primeiro em Jornal Opção.
