É simples assim: a mocinha e o bandido
Há vozes nas esquerdas brasileiras, algumas poderosas, alertando para que ninguém se engane com Kamala Harris, não acene muito para a democrata e não corra o risco de aparecer em festas em que ela esteja, mesmo que isso seja improvável.
Saiam de perto de Kamala, porque ela é mulher, negra, descendente de uma indiana e de um marroquino e até já ergueu o dedo para Donald Trump, só não é o que vocês pensam, diz o alerta.
Mas o jornalista Jonathan Alter, colunista do The New York Times, socorre os que, diante da gritaria dos alarmistas, estiverem vacilantes ou assustados com as armadilhas dos sentimentos despertados pela substituta de Joe Biden.
Alter encerrou seu artigo nessa segunda-feira no NYT com essas duas frases, depois de divagar sobre qual será agora a reação dos republicanos: “A promotora contra o criminoso. Gosto desse confronto”.
É o que pode bastar, antes do aprofundamento de questões políticas mais complexas, ideologias, índoles e diferenças e semelhanças entre os protagonistas do que vem aí a partir da saída de cena do presidente com déficit cognitivo.
O confronto visto por Alter pode nos servir por enquanto com o clichê de uma mocinha contra o bandidão. Temos alguém que já foi agente da lei de um lado, com todas as suas contradições, e temos um bandido do outro.
Um bandido inquestionável, absoluto. Com a mesma síntese, o NYT de Jonathan Alter publicou em editorial: “Trump é um criminoso que desrespeita a lei e a Constituição, um mentiroso inveterado que não se dedica a nenhuma causa maior do que o seu interesse próprio”.
O colunista escreveu que o sujeito é um criminoso, repetindo o que o seu jornal havia dito um dia antes como opinião do grupo: ele é mesmo um criminoso. Algo que Folha, Estadão e Globo nunca escreveriam sobre Bolsonaro, seu equivalente brasileiro.
Por covardia, nunca escreverão. Mesmo que Trump e Bolsonaro tenham cometido crimes semelhantes, principalmente como golpistas. Então, diante dos alertas de parte das esquerdas de que Kamala também é belicista e imperialista e que apoiou a guerra do Vietnã quando criança, nos serve a síntese de que teremos uma promotora diante de um gângster.
Até porque ninguém enxerga Kamala como de esquerda ou muito fora do padrão do que seja um democrata. Nem que vá questionar a Otan, ficar amiga do Irã e interromper, logo depois da posse, o genocídio em Gaza.
Mas é possível pensar que Kamala seja alguém capaz de mudar o tom das relações com os criminosos do governo israelense e de vislumbrar novos diálogos com o mundo, em todas as áreas, das guerras ao ambientalismo.
Se não for bem assim, já nos basta agora que derrote Trump e a ameaça de permanência da extrema direita, não durante quatro anos, mas por décadas no poder. Que Kamala nos salve do que vem dos Estados Unidos como ajuda na ressurreição do bolsonarismo.
Enquanto isso, por aqui vamos dando um jeito na turma mais depressiva, que só estará satisfeita quando puder ver um democrata com o perfil de Guilherme Boulos enfrentando quem suceder Trump como criminoso fascista.
*Moisés Mendes é jornalista em Porto Alegre. É autor do livro de crônicas Todos querem ser Mujica (Editora Diadorim).
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