Violência psicológica atinge 88% das mulheres; Goiás ocupa o 9º lugar no país
Dados do maior levantamento já realizado sobre a violência psicológica à mulher, executado pelo Instituto DataSenado, mostram que 88% das mulheres no país já foram vítimas desse crime. Paralelamente, Goiás está em nono lugar no ranking nacional de estados onde as mulheres mais sofrem violência psicológica, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025.
A pesquisa, que ouviu 21.641 brasileiras, mostra que cerca de 71% das agressões são testemunhadas por terceiros, frequentemente os próprios filhos, e 40% das testemunhas adultas nada fazem para interromper o ciclo de violência.
Goiás está entre os estados que registraram crescimento significativo nos casos de perseguição (stalking) contra mulheres, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025. Os registros subiram de 3.792 casos em 2023 para 4.098 em 2024, um aumento de 8,1%, acima da média nacional de 18,2% — o que coloca o estado entre os que mais ampliaram o número absoluto de ocorrências. A taxa por 100 mil habitantes também avançou, passando de 43,7 para 50,6, indicando que o fenômeno se espalha de forma consistente pelo território goiano.
O estado também apresentou alta nos casos de violência psicológica contra mulheres, que cresceram de 2.828 para 3.061 ocorrências entre 2023 e 2024 — aumento de 7,3%, acima da média nacional de 6,3%.
Veja os dados abaixo.
Diante desse cenário, a reportagem do Jornal Opção buscou a delegada Ana Elisa Gomes, titular da Delegacia Estadual de Atendimento Especializado à Mulher (DEAEM) de Goiás, para relatar as dificuldades e as estratégias de combate a um crime que não deixa marcas físicas, mas cicatrizes profundas na psique feminina.
Logo de início, a delegada desconstrói a premissa de que a violência física seria mais simples de combater. “Eu diria que todas as violências praticadas contra mulheres, no âmbito da violência doméstica para mulheres, são violências difíceis de serem combatidas, porque elas envolvem várias circunstâncias”, afirma.
Ela detalha a complexidade do ambiente onde esses crimes ocorrem: “É uma violência que ocorre dentro de casa, onde a polícia não tem entrada. É uma violência que envolve sentimentos pessoais. Muitas vezes a mulher é agredida pelo parceiro, pelo pai dos filhos dela, pelo homem que ela nutre sentimentos por ele. Uma vida tem uma história de vidas, então denunciar o pai dos seus filhos, seu parceiro, não é uma decisão fácil de ser tomada.”
O caminho da denúncia e burocracia
Ana Elisa Gomes descreve o percurso desgastante que se inicia após a coragem da denúncia. “Depois que faz a denúncia, tem uma série de burocracias que devem ser seguidas, que isso também gera cansaço, gera frustração”, explica.
A polícia, segundo ela, se esforça para um atendimento célere, mas o desgaste é inevitável. “Ela precisa ser ouvida na delegacia, ela precisa dar detalhes do que aconteceu. Muitas vezes, apesar da investigação feita pela delegacia, ela não é satisfatória para o Ministério Público. E ele insiste em oitivas repetidas desta mulher.”
Apesar das dificuldades, a delegada enxerga a denúncia como um ato de libertação. “Quando a mulher decide denunciar pela violência doméstica, é uma decisão libertadora. Mas é uma decisão que leva a um caminho de dificuldades. Não são dificuldades impostas pela polícia civil, é pelo próprio sistema. E por tudo o que acontece ao redor disso. Se envolve família, envolve o núcleo social onde ela convive, enfim.”
Qual a linha entre a violência física e a psicológica?
“A violência física é uma violência mais fácil de ser visualizada. A mulher chega lesionada, com hematomas, braço quebrado, dente quebrado, enfim. Facada, tiro. Então, é inquestionável. Ela tá lá pura e simples, a gente precisa de um laudo médico pericial apenas. Mesmo que ela não queira falar sobre a violência, ela está lá explícita para nós.”
Em contrapartida, a violência psicológica demanda um trabalho investigativo minucioso e complexo. “Eu tenho que comprovar o dano emocional promovido nessa mulher.” Para isso, a vítima precisa reviver todo um trauma.
“Ela tem que relatar toda uma história de vida para mim, quando ela vem à delegacia. De toda essa violência que ela sofreu, as agressões verbais, as ameaças, as imposições, as humilhações, as perseguições. Porque a violência psicológica envolve todo esse cenário que, de alguma forma, gera dano emocional para essa mulher.”
Além disso, a comprovação legal é um obstáculo. “O crime de violência psicológica é bem específico. Eu tenho que seguir aquilo que diz o Código Penal. E ele está dito lá e definido sendo aquela violência que gera dano emocional. Então, eu preciso comprovar no inquérito policial, nas investigações, que houve esse dano emocional.”
Frequentemente, o Ministério Público exige laudos médicos ou psicológicos, um recurso inacessível para muitas mulheres. “Nem toda mulher tem condição de trazer algo nesse sentido.”
A onipresença da violência psicológica e suas sequelas
A delegada aponta a natureza insidiosa desse crime. “É uma violência, assim, como é que eu vou dizer? Com poucos obstáculos que impeçam de ser praticada. Porque, como eu disse, ela ocorre diariamente, no convívio ali do casal, né? Na hora de dormir, na hora das refeições, na hora de sair de casa, é aquela violência perpetrada, às vezes, até através de atitudes silenciosas. Por isso, ela é muito comum, mas é muito complexa de ser trabalhada.”
Para a delegada, as vítimas da violência psicológica superam em número as da física. “Eu acredito, sim, que hoje nós temos mais vítimas da violência psicológica, do que da violência física propriamente dita. Até porque, eu acredito que aquela vítima que foi vítima da violência física, ela já vem passando pela violência psicológica, para que chegasse ali, até a agressão física.”
As consequências, embora não sejam visíveis a olho nu, são devastadoras. “Eu acho que ela tem que falar muito dos prejuízos emocionais que ela está tendo. Mudanças, por exemplo, mulher que sofre muita violência, muitas vezes, ela começa a render menos no trabalho, às vezes, ela perde o emprego, ela começa a ter problemas de saúde, problemas para dormir, na alimentação, problemas de relação com os filhos, com as pessoas da família, começa a ficar mais retraída.”
A delegada enfatiza os riscos de tal situação e como às consequências estão presentes. “É uma violência silenciosa, mas que gera muitas sequelas, muitas consequências, às vezes, até mais graves do que a própria violência física. A gente recebe, muitas vezes, mulheres que estão em tratamento medicamentoso, com antidepressivos, com tratamento químico mesmo, para sair desse processo de depressão, de automutilação, muitas vezes.”
Como funciona a investigação para proteger às vítimas?
Diante do desafio de provar um crime que muitas vezes ocorre “entre quatro paredes”, a delegada explica a metodologia da Polícia Civil de Goiás. “A Polícia Civil promove o ato de todas as pessoas que de alguma forma são citadas nesse processo.”
A investigação busca construir um quebra-cabeça a partir de indícios. “A gente tem pessoas que visualizam o comportamento da vítima, que às vezes presenciaram discussões, às vezes troca de mensagens, familiares que acompanham ali a mudança do comportamento, muitas vezes até o emocional daquela mulher, o comportamento até nas redes sociais. E todas essas pessoas que de alguma forma trazem essas informações, elas são ouvidas na delegacia.”
Segundo Ana Elisa, a delegacia, mesmo especializada, atua com rigor investigativo. “A delegacia da mulher é especializada no atendimento à mulher em situação de violência de gênero. Mas é uma delegacia que precisa investigar a veracidade dos fatos que são noticiados. Então não basta apenas a mulher chegar aqui e noticiar que foi vítima da violência. Eu preciso investigar esse fato e confirmar de fato se aquele crime ocorreu. Eu não posso ser leviana, simplesmente ouvir, absorver aquele relato, pronto, ele está pronto e acabado.”
Nesse contexto, o trabalho das psicólogas da DEAEM é uma peça-chave. “Nós temos duas funcionárias psicólogas. E elas fazem o acompanhamento psicológico dessas mulheres, elas produzem relatórios psicológicos. Então a gente municia as nossas investigações também com esses relatórios psicológicos, de forma que a gente enriquece o trabalho investigativo para levar ao Ministério Público o maior número de informações que comprovam a ocorrência do crime que ela noticiou inicialmente.”
As estratégias de enfrentamento e a cultura machista como pano de fundo
Questionada sobre as estratégias específicas para combater a violência psicológica, a delegada amplia o foco para o combate geral à violência de gênero. Ela considera o cenário preocupante não só em Goiás, mas no Brasil inteiro.
Ela identifica a raiz do problema em uma cultura tóxica. “A gente vive uma sociedade extremamente machista, extremamente preconceituosa, no meu ponto de vista, cada vez mais violenta, e que inclusive se alimenta de situações violentas, estimula a agressividade e a violência para a correção de algumas outras situações.”
Como contraponto, a Polícia Civil tem investido na especialização de suas equipes. “Cada vez mais as equipes da Polícia Civil são levadas novamente à Escola Superior da Polícia Civil para cursos de atualização, estamos trabalhando muito em parceria com o Ministério da Justiça também para cursos de atualização, até para que a gente entre nesse cenário e saiba fazer essa abordagem de gênero da forma como ela deve ser feita, para que a gente consiga ouvir a mulher aqui, sem julgamentos.”
Ana Elisa Gomes reconhece que os próprios policiais não estão imunes a esses vieses culturais. “Porque todos nós, inclusive nós policiais, a sociedade em geral, somos vítimas desse processo, dessa questão cultural que nos arrasta aí há centenas de anos. Então a gente tem que se despir de todos esses preconceitos e saber ouvir a mulher com atenção, com acolhimento, para que ela realmente confie no trabalho da Polícia Civil quando ela entra na delegacia da mulher.”
Segundo a delegada, a meta “é especializar cada vez mais as equipes, melhorar cada vez mais o atendimento das DEAMs que existem no Estado de Goiás, e naqueles municípios onde não tem DEAM, capacitar aquelas equipes que estão ali para também estarem preparadas para essas mulheres que eventualmente procurem as delegacias.”
Os crimes mais registrados em Goiás
Em Goiás, os registros de ocorrência mostram uma hierarquia específica. “Ameaça e lesão corporal. São as mais comuns registradas. Injúria também. Porque a violência psicológica é registrada, mas num cenário de registro em volume, eu posso afirmar com certeza que a violência física e as ameaças são maiores em registro.”
A delegada faz, no entanto, uma ressalva fundamental, alertando para a “cifra negra” da violência doméstica. “Essa pesquisa, certamente, foi pautada nas entrevistas. E é importante dizer que a maior parte, eu posso afirmar isso com certeza, de mulheres que são vítimas de violência, não só da psicológica, de todas as violências em geral, praticadas em um doméstico familiar, elas não são trazidas ao conhecimento das autoridades. Elas ficam trancadas ali. Na casa, na família, no convívio social dela com as pessoas que ela conhece.”
Os dados, segundo ela, são apenas a ponta do iceberg. “Pesquisas já apresentaram que nem 20% da violência que é praticada é noticiado pra nós. Então as cifras negras são assustadoras. Nós não sabemos de fato a realidade do Brasil, das mulheres que vivem no Brasil. A realidade da violência doméstica e familiar.”
Entre os registros formais, além de lesão corporal e ameaça, a injúria (xingamentos) é muito comum. “Em qualquer agressão a gente vai ter xingamento. A gente sabe que é do comportamento do agressor, não estou justificando, mas ele tá batendo e ele tá xingando. ‘Vagabunda, desgraçada, você não vale nada’. São muito comuns os xingamentos.”
Outro crime em ascensão em Goiás é a perseguição (stalking). “Aquele indivíduo que está inconformado com o fim do relacionamento e persegue essa mulher de todas as formas, não só nas redes sociais, mas vai nos lugares onde ela está, passa na porta da casa dela, os locais de convívio social que ela frequenta, o trabalho dela, enfim. Tem sido uma ocorrência também cada vez mais comum de registro.” As violências sexuais, embora registradas, não constituem a maioria.
Denúncias salvam vidas em um aglomerado de incertezas
A delegada Ana Elisa Gomes não hesita ao dar um conselho às mulheres que hesitam em denunciar. “Eu não tenho dúvidas, por estatísticas, que, ainda que eu concorde que denunciar não é uma decisão fácil e não é, porque eu me coloco nesse lugar, eu penso também que a gente é mulher no Brasil, e ninguém de nós está livre de sofrer uma violência. Uma violência de gênero. Ninguém. Nem eu por ser delegada. Mas eu tenho certeza que a denúncia ainda é a melhor decisão.”
Sua convicção baseia-se nos números dos feminicídios. “Infelizmente, nós temos algumas vítimas com medidas protetivas que foram vítimas de feminicídio. Mas, num cenário de 20 mil mulheres com medidas protetivas, a gente tem 5 ou 6, de 20 mil, que foram vítimas de feminicídio. O ideal é que não tivesse nenhuma. Mas a gente pode afirmar com certeza que a medida protetiva salva vidas.”
Ela analisa os casos em que a medida falhou. “E, claro, em algumas dessas ocorrências, a gente tem situações bem peculiares. Tinha medida, mas voltou a viver com o agressor. Tinha medida, mas marcou um encontro com o agressor. Então, assim, não estou querendo responsabilizar a vítima, mas facilitou o acesso para esse agressor.” Houve, contudo, casos em que o agressor conseguiu burlar a proteção.
“A gente teve, acho que, dois casos bem sérios, onde a mulher tinha medida, ela realmente estava totalmente amedrontada e, infelizmente, o agressor conseguiu chegar até ela e matá-la.”
O dado mais significativo, porém, vem da análise dos feminicídios onde não houve qualquer registro prévio. “Os outros feminicídios são de situações de mulheres que nunca nem estiveram numa delegacia. A grande parte deles, dos 50, se não me engano, a gente chegou a 50 feminicídios esse ano, 5 ou 6 as mulheres tinham medidas protetivas e todos os outros, as mulheres não tinham nem mesmo registro policial.”
A conclusão da delegada é uma advertência sombria, mas necessária. “Eu não acredito que o feminicídio foi a primeira violência que ela sofreu. Certamente, ela já tinha sofrido outras violências, vivenciado outras violências, mas por N razões que a gente entende, elas não denunciaram. E talvez se tivessem denunciado, talvez tivessem buscado as ferramentas de proteção, talvez a gente tivesse conseguido evitar a ocorrência do feminicídio.”
Ana Elisa reforça ainda a importância do trabalho policial inicial, por mais burocrático que seja. “Por isso a nossa preocupação é de estar sempre fazendo um bom atendimento no começo. Pra que ela confie no nosso trabalho. Por mais que seja um trabalho burocrático, porque é uma investigação, não tem jeito, eu tenho que investigar, eu preciso de elementos de prova. E isso talvez é cansativo pra vítima. Mas eu tenho certeza que a vítima que faz essa escolha, ela tá muito mais garantida e preservada na sua integridade do que aquela que, por alguma razão, ainda resolveu não denunciar as agressões sofridas.”
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