Para Paulo Sant'Ana
Tive um grave contencioso com o Paulo Sant'Ana, todo mundo sabe disso. Mas, antes da minha entrada no Sala de Redação , éramos bons amigos. Saímos juntos muitas vezes, partilhamos jantares, invadimos madrugadas conversando e, não raro, flagrei-me na obrigação de ouvi-lo cantar por longos minutos, prova cabal e irrefutável da minha amizade.
Uma tarde, lá estava eu, caçando verbos na Redação da Zero, quando o Sant'Ana me ligou.
– Desce aqui agora! Vem aqui no meu carro, agora! É importante!
A urgência na voz dele me assustou. Desci correndo. Encontrei o Sant'Ana instalado dentro da sua camionete. Pediu que me acomodasse no banco do carona.
– O que foi? – perguntei, preocupado.– Escuta isso! – falou, com voz embargada. Acionou o som do carro. Queria que eu ouvisse um bolero dos anos 40 que ele havia descoberto naquele dia. – Escuta que maravilha! – dizia, chorando. – Que maravilha!
Sim, fui amigo do Sant'Ana.
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No Sala , nossas personalidades se chocaram irremediavelmente. Desde então, não nos falamos mais. Sei que isso é ridículo, brigas em geral são mais ridículas do que cartas de amor, tanto que nem merecem poemas de Fernando Pessoa. Mas... que fazer? Tenho tentado não ser ridículo toda a vida e toda a vida tenho fracassado.
Nada disso me impede de reconhecer a importância do Sant'Ana no jornalismo gaúcho. Nunca houve jornalista mais famoso do que o Sant'Ana no Rio Grande do Sul, nem jamais haverá. O Sant'Ana soube ocupar com garra e intensidade os espaços de que foi inquilino.
Aí roço numa questão importante: nós, jornalistas, somos, exatamente, inquilinos dos espaços que porventura preenchemos nos veículos de comunicação. Os espaços não são nossos. Nós estamos ali por temporadas. Durante esse tempo, podemos ocupar bem ou mal o espaço, podemos fazer com que aquele período signifique algo para a comunidade ou não.
O Sant'Ana fez isso muito bem. O Sant'Ana se inscreveu na história do Rio Grande do Sul com seu desempenho, e essa é uma façanha rara para um jornalista. Jornalistas são como o jornal do dia: são importantes só na sua data de validade.
O Sant'Ana conseguiu ultrapassar essa barreira precisamente graças à dedicação furiosa, à sede insaciável com que atuou na imprensa. Esse é um de seus grandes méritos. E foi por isso, também, que nos desentendemos. Em certo momento, ele começou a ver em mim uma ameaça e, então, numa reação natural a quem preza tanto o espaço que ocupa, passou a me atacar.
Rompemos em definitivo.
Tudo bem, rompimentos fazem parte da vida. Em geral, são positivos para ambas as partes, porque, quando você desfaz um laço, você, exatamente, se desamarra, torna-se mais livre. Rompeu, acabou, não se pensa mais nisso.
Mas tenho de dizer que penso no Sant'Ana. Entendo a briga que tivemos como inevitável, por todas as circunstâncias envolvidas e devido às nossas personalidades. Ocorre que, agora, ele está em casa, recuperando-se de uma cirurgia complicada, e torço para que fique bom logo. Sei o quanto o Sant'Ana gosta de viver, sei com que sofreguidão ele sorve cada dia e espero que sorva muitos mais, com plenitude e prazer. Um homem que chama um amigo no meio da tarde para com ele partilhar um bolero é, sem dúvida, um homem afetivo e a vida, afinal, é feita de afetos. Inclusive dos que se encerram.
Saúde e sorte, Sant'Ana. É o desejo sincero de um amigo antigo.