Escritores como personagens (2): Rosa e Barros — Labuta pra coisar melhor, de Hélverton Baiano
Todos os que têm a alma ligada aos seres que andam ou se plantam na terra se encantam com os trens do sertão. Sou assim e vejo sapiência nas desenvolturas do mato
(O que pode acontecer quando aqueles que escrevem literatura se tornam eles mesmos literatura? Literalmente, tudo. Explorar essas múltiplas possibilidades é a proposta dessa série de contos publicados pelo Jornal Opção, com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, presidente da União Brasileira de Escritores-Seção Goiás. Veremos transformados em personagens escritores e escritoras célebres como Clarice Lispector, Albert Camus, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Edgar Allan Poe e muitos outros. Acompanhe a série e espere pela aparição de seu escritor preferido.)
Guimarães Rosa e Manoel de Barros — Labuta pra coisar melhor
Hélverton Baiano
De nome, o meu, Zé Eleutério, filho de Sinhana de Raimundo e de Raimundo de Sinhana, mãe e pai, criado versando na sabedoria deles, que, semianalfabetos, labutaram mode a gente prosperar estudos. De certo, tirei até o ginásio e me apetrecho com as grandiosidades que encontro nos ditos de poetas e prosadores que deram de aparecer na pequena biblioteca do nosso povoado em meu interiorzão brabo, onde mesmo com o pouco sou professor das crianças da nossa única escola. Zuretaram dentro de mim umas coisas boas, quando encontrei as histórias de João Guimarães Rosa e os versos de Manoel de Barros, parecendo que escreveram dicretado nos meus tinos. Boto isso nos meus exemplos de sala de aula.
Todos os que têm a alma ligada aos seres que andam ou se plantam na terra se encantam com esses trens do sertão. Eu sou assim e vejo sapiência nas desenvolturas do mato. Recito as poesias de Catulo, Patativa e Ascenso e receito Manoel de Barros. Quando me deparei com João Guimarães Rosa e o seu “Grande Sertão: Veredas” não quis guardar só pra mim e me ajeitei numa história para contar aos alunos sobre a grande alma dessas vivências, cortadas e recortadas. Como não quero me calar, astucio sabenças porque “ficar calado é que é falar nos mortos…”, recorto, falo e digo um pouco dessas partes que Guimarães Rosa assoprou no mundo pelas bocas de Diadorim e Riobaldo.
Eu tenho encantamento com Rosa, pispiando que para ele “o Sertão é do tamanho do mundo”, e eu sou desse meio, um mundo onde “pobre tem de ter um triste amor à honestidade”. Criado nos entremeios de um cerrado beirando a caatinga, me encanta ver as belezas das veredas. Cada beleza tem sua medida, os passarinhos têm a sua: “Sei o grande sertão? Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas…”
Certa feita, apeguei por demais com as ignorãças de Manoel de Barros, que diz, entre outras coisas que “poesia é voar fora da asa”. Quando quis explicação, cantou:
“O ocaso me ampliou para formiga.
Aqui no ermo estrela bota ovo.
Melhoro com meu olho o formato de um peixe.
Uma ave me aprende para inútil.
A luz de um vaga-lume se reslumbra.
Quero apalpar o som das violetas.
Ajeito os ombros para entardecer.
Vou encher de intumências meu deserto.
Sou melhor preparado para osga.
O infinito do escuro me perena”.
Eu vadeio nessas coisas especiais de boas, que fazem a gente coisar melhor. “Eu queria decifrar as coisas que são importantes”, assegurou Rosa pela boca de um dos seus.
Essas coisas eram vistas por um deles como obras de Deus: “Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver — a gente sabendo que ele não existe, aí é que toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo”.
Eu assuntei sentido demasiado, porque aprecio, em Manoel de Barros, do Pantanal, as sabedorias do compadre seu Quelemém, das Veredas, de Guimarães Rosa? “Aprendi um pouco foi com o compadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa.” … “A gente sabe mais, de um homem, é o que ele esconde”.
Por vivências aqui, sei que a vida muitas vezes vai amargurando o homem, tornando-o, em suma, sumo. Até vi Guimarães Rosa contar o que é isso: “Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica demais — a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!” Noutro ponto dizia, certamente para me agradar ainda mais, que “o vau do mundo é a alegria”. O vau é onde dá passagem, por onde a vida segue, é onde a gente atravessas as águas. O sertão das Veredas explica pra gente? “O senhor por ora mal me entende, se é que no fim me entenderá. Mas a vida não é entendível.”
Chegava à conclusão de Rosa que a vida não era para ser entendida, apenas vivida. “A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação — porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada … A vida é um vago variado … A vida é muito discordada. Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz (cavalo de Riobaldo). Tem as caras todas do Cão, e as vertentes do viver”.
Nos meus passeios com a meninada, nos ensinamentos, versei algumas palavras de poesia vinda de Manoel de Barros, que eles entendiam, porque viviam aquilo ali:
“…
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras”.
Eu terminava explicando algumas coisas que a terra, os matos e os bichos já ensinavam a eles. Aprendiam essa língua e aos poucos iam se melhorando.
Hélverton Baiano é poeta, prosador e jornalista.
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